terça-feira, setembro 16, 2008

Póeme ser le désastre de Lisbonne, Voltaire

O homem, estranho a si, é do homem ignorado,
onde estou, onde vou, quem sou, donde tirado?
Átomos em tortura em lama que se empasta,
cuja sorte se joga e a morte então arrasta,
mas postos a pensar, e átomos que vivem,
guiados pela mente, os céus que já medirem;
ao seio do infinito aspira o nosso ser,
sem um momento só nos ver, nos conhecer.
O mundo, este teatro, orgulho e erro abalam,
e é de infortúnios só que de ventura falem.
Busca-se o bem-estar em queixas a jemer:
a morte ninguém quer, ninguém quer renascer.
Às vezes, quando a dor os dias consagramos,
pela mão de prazer se vai e como a sombra passa;
sem conta nossos são perdas, choro e desgraça.
O passado é-nos só uma lembrança triste;
e o presente é atroz, se o porvir não existe,
se a noite tumular no ser que pensa avança.
“Bem será tudo um dia”, é essa a vossa esp’rança;
“Hoje tudo está bem”, é essa a ilusão.
Com sábios me enganei e só Deus tem razão.
Humilde nos meus ais, sofrendo em impotência,
eu não atacarei porém a Providência.
Viram que outrora em tom não lúgubre cantei
do mais doce prazer a sedutora lei,
outro tempo e costume: a idade dá sejaza,
do humano extraviar partilho ora a fraqueza,
quero na treva espessa a mim iluminar,
e apenas sei sofrer e já não murmurar.
Um cálice, como a sua hora desse,
Ao seu Deus foi dizer apenas me prece:
“Ser sem limite e rei único na verdade,
trago-te o que não tens na tua imensidade,
faltas, erro, ignorância e males com pujança”.
Mas ‘inda ele juntar podia a esperança.


Voltaire,
Póeme ser le desastre de Lisbonne.

terça-feira, setembro 09, 2008

Os actos


“ (…) que se antes de cada acto nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala (…)”

Ensaio sobre a Cegueira, José Saramago